Clarice Lispector fala por mim.

sábado, 29 de novembro de 2008


Hoje eu não preciso falar. Não preciso pensar. Não preciso escrever.

Clarice Lispector fala por mim.



Para começo de conversa, afianço que só se vive, vida mesmo, quando se aprende que até a mentira é verdade.

Recuso-me a dar provas.

Mas se alguém insistir muito em "porquês", digo: a mentira nasce em quem a cria e passa a fazer existirem novas mentiras de novas verdades.

Uma palavra é mentira de outra.

Quero exigentemente que acreditem em mim.

Quero que acreditem em mim até quando minto.

Dizer palavras sem sentido é minha grande liberdade.

Pouco me importa ser entendida, quero o impacto das sílabas ofuscantes, quero o nocivo de uma palavra má.[...]

Tenho medo de escrever.

É tão perigoso.

Quem tentou sabe.

Perigo de mexer no que está oculto[...]

para escrever tenho que me colocar no vazio.

Neste vazio é que existo intuitivamente. ]

Mas é um vazio terrivelmente perigoso; dele arranco sangue[...]

Escrevo para nada e ninguém.

Se alguém me ler será por conta própria e auto-risco.

Eu não faço literatura: eu não vivo do correr do tempo.

O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever.

Há tanto anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar.[...]

Existir às vezes me dá tal taquicardia.

Eu tenho tanto medo de ser eu.

Sou tão perigoso.

Me deram um nome e me alienaram de mim.[...]

eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar.[...]

só sei uma coisa: neste momento estou escrevendo: "neste momento" é coisa rara porque só às vezes piso com os dois pés na terra do presente: em geral um pé resvala para o passado, outro pé resvala para o futuro.

E fico sem nada.[...]

eu também não sei não pensar não-pensar.[...]

eu não tenho nenhuma missão: vivo porque nasci.

E morrerei sem que a morte me simbolize[...]

viver exige tal audácia. [...]

por medo da loucura, renunciei a verdade.

Minhas idéias são inventadas.

Eu não me responsabilizo por elas.

O mais engraçado é que nunca aprendi a viver.

Eu não sei nada.

Só sei ir vivendo.

Como o meu cachorro[...]

minha vida é um grande desastre.

É um desencontro cruel é uma casa vazia.

Mas tem um cachorro latindo.

E eu – só me resta latir para Deus.

Vou voltar pra mim mesma.

É lá que eu encontro uma menina morta sem pecúlio.[...]não abri mão de minha luta e de minha indecisão e o fracasso – pois sou um grande fracassado – o fracasso me serve de base para eu existir.

Se eu fosse um vencedor? Morreria de tédio. "Conseguir" não é o meu forte.

Alimento-me do que sobra de mim e é pouco.

Sobra, porém um certo secreto silêncio. [...]

eu só uso raciocínio como anestésico. [...]

eu me dou melhor comigo mesma quando estou infeliz: há um encontro. Quando me sinto feliz, parece-me que sou outra.

Embora outra da mesma.

Outra: estranhamente alegre, esfuziante, levemente infeliz é mais tranqüilo.[...]

Acordei hoje com tal nostalgia de ser feliz.

Eu nunca fui livre a minha vida inteira.

Por dentro eu sempre me persegui.

Eu me tornei intolerável para mim mesma.

Vivo numa dualidade dilacerante.

Eu tenho uma aparente liberdade, mas estou presa dentro de mim.

Eu queria uma liberdade olímpica.

Mas essa liberdade só é concedida aos seres imateriais.

Enquanto eu tiver corpo ele me submeterá às suas exigências.

Vejo a liberdade como uma forma de beleza e, essa beleza me falta.[...]

você é quem me pergunta se é doce morrer.

Eu também não sei se é doce morrer.

Até agora só conheço a morte do sono.

Vivo me matando todas as noites.[...]

O que me mata é o cotidiano.

Eu queria só exceções.

Estou perdida: eu não tenho hábitos.[...]

Eu venho de uma longa saudade.

Eu, a quem elogiam e adoram. Mas ninguém quer nada comigo.

Com exceção de uns poucos, todos têm medo de mim como se eu mordesse.[...]

eu escondo de mim o meu fracasso.

Desisto.

E tristemente coleciono frases de amor.[...]

eu sou nostálgica demais, pareço ter perdido uma coisa não se sabe onde e quando.[...]

Não – para falar sinceramente – não permito que o mundo exista depois da minha morte.

Dou remorsos a quem eu deixar vivo e vendo televisão, remorsos porque a humanidade e o estado de homem são culpados sem remissão da minha morte.[...]

Sonhar não é ilusão.

Mas é o ato que uma pessoa faz sozinha[...]

só me abraças forte demais quando queres, mas nunca adivinhas quando eu quero[...]

eu não existiria se não houvesse palavras [...]

eu antes era uma mulher que sabia distinguir as coisas quando as via.

Mas agora cometi o erro grave de pensar [...]

eu minto tanto que escrevo.

Eu minto tanto que vivo.

Eu minto tanto que ando à procura da verdade de mim[...]

querer entender é das piores coisas que podiam me acontecer.[...]

Todo mundo que aprendeu a ler e escrever tem uma certa vontade de escrever.

É legítimo: todo ser tem algo a dizer.

Mas é preciso mais do que vontade para escrever[...]

às vezes escrever uma só linha basta para salvar o próprio coração [...]

às vezes, só para me sentir vivendo, penso na morte.

A morte me justifica.

Rezo para achar o meu verdadeiro caminho.

Mas descobri que não me entrego totalmente à prece, parece-me que sei que o verdadeiro caminho é com dor.

Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade.

Tenho medo de mim, pois sou sempre apta a poder sofrer.

Se eu não me amar- estarei perdida- porque ninguém me ama a ponto de me ser.

Tenho que me querer para dar alguma coisa a mim.

Tenho que valer alguma coisa?

Oh protegei-me de mim mesma que me persigo.

Valho qualquer coisa em relação aos outros – mas em relação a mim, sou nada.


(Um sopro de vida - Clarice Lispector)